1. Introdução
A possibilidade de modificação unilateral do contrato administrativo existe por diversas razões. A rigor, é o “lado mau” que fica em evidência, pois grande parte das situações em que ela ocorre advém de mau planejamento, de desídia ou imperícia de agentes responsáveis. Ademais, sob o enfoque da Análise Econômica do Direito, questionam-se os efeitos que tais poderes surtem, especialmente, sobre a economicidade do ajuste. Contudo, no sistema atual, não é possível imaginar um contrato administrativo sem as aludidas prerrogativas. O dever de licitar previamente engessa o gestor de tal forma que se faz necessário, ao pressuposto de novas necessidades, permitir, de algum modo, modificações para o atendimento do interesse público original.
Ao particular contratado, a Lei 8.666/93 contém um regramento razoável, estabelecendo que as cláusulas econômico-financeiras não podem ser alteradas unilateralmente e, em caso de modificação nas chamadas cláusulas de serviço, todas as condições originalmente estabelecidas para o cumprimento das obrigações contratuais devem ser mantidas, incluindo preço e prazo. A garantia constitucional à manutenção das condições efetivas da proposta também assegura o reequilíbrio econômico-financeiro nos casos em que o ato administrativo vier, comprovadamente, a prejudicar a equação originalmente estabelecida.[1] Assim, a própria imposição administrativa ao contratado não é absoluta, já que condicionada à obediência de todas as condições legais.
Tem-se, portanto, em regime de normalidade e aplicação irrestrita da Lei 8.666/93, a possibilidade de modificação unilateral do contrato na ordem de 25% ou 50% sobre o valor inicial atualizado do contrato, conforme o caso, estando, o contratado, obrigado a aceitá-la se, e somente se, todas as condições originais, inclusive e principalmente as econômico-financeiras, forem respeitadas pela Administração contratante.[2] A aplicação dos referidos limites também às alterações qualitativas, alvo de dissidência no âmbito da doutrina, é questão superada no âmbito do Tribunal de Contas da União desde a Decisão 215/99-Plenário, exarada em caráter normativo.
A Lei 13.979/20, que dispôs sobre medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, responsável pelo surto de 2019, trouxe regras específicas para as contratações públicas visando a “aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência”, entre elas, a possibilidade de alteração contratual unilateral pela Administração contratante até o limite de 50%, para acréscimos e supressões. O texto legal permite algumas conclusões claras, mas outras questões importantes e diretamente relacionadas à sua aplicação precisam ser enfrentadas.
2. Sobre o que não há dúvida
O art. 4º – I da 13.979/20, acrescentado pela MPV 926, estabelece que, “[p]ara os contratos decorrentes dos procedimentos previstos nesta Lei, a administração pública poderá prever que os contratados fiquem obrigados a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões ao objeto contratado, em até cinquenta por cento do valor inicial atualizado do contrato.” Da literalidade do dispositivo, é possível extrair que:
a) A norma se aplica aos contratos celebrados com base na Lei 13.979/20;
b) A possibilidade de ampliação do limite se aplica tanto a contratos decorrentes da contratação emergencial fundada no art. 4º, quanto a contratos decorrentes do pregão simplificado previsto no art. 4º – G;
c) A ampliação dos limites é uma possibilidade que precisa de previsão em edital e/ou no termo de contrato;
d) O limite de 50% pode ser para mais ou para menos, aplicando-se tanto a modificações que aumentarem o valor do contrato, quanto as que o diminuírem; e
e) A obrigação do contratado de aceitar a alteração está atrelada à manutenção, pela Administração, das mesmas condições iniciais.
3. A possibilidade de aplicação analógica a contratos da Lei 8.666/93
Aumentar os limites para modificações unilaterais é coerente com o contexto de crise e de incremento da imprevisibilidade, regida pela lógica da simplificação de procedimentos, inclusive de planejamento. Por isso, rigorosamente e tal como a própria literalidade do dispositivo expressa, a regra se destina, apenas, aos contratos para “aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus” de que trata a referida Lei.
Entretanto, não se pode esquecer que inúmeras situações concretas, eventualmente impensadas no momento da edição da lei, ocorrerão durante o enfrentamento da pandemia. Assim, por exemplo, um contrato que tenha sido celebrado sob as regras da Lei 8.666/93 e cujo objeto possa ser, atualmente, considerado necessário ao enfrentamento da emergência, nos termos do art. 4º da Lei 13.979/20. Nesse caso, havendo a necessidade de alteração contratual para além de 25%, existirão duas opções: a contratação nos termos do art. 4º da Lei 13.979/20 ou a realização do aditivo, numa aplicação analógica do seu art. 4º – I.[3]
Portanto, quando o objeto do contrato celebrado com base na 8.666/93, anteriormente à pandemia, for equivalente a “aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”, existirá possibilidade de alterações contratuais até o limite de 50%. Entretanto, a ausência de previsão inicial no edital e/ou no contrato, condição clara imposta pelo art. 4º – I da Lei 13.979/20, exigirá que a modificação se faça de forma consensual, inviabilizando, pois, a imposição unilateral.
4. A desnecessidade do fato superveniente para justificar as alterações nos contratos da Lei 13.979/20
O mesmo argumento utilizado para justificar a elevação dos limites autoriza a dizer que o fato superveniente, caracterizador de uma necessidade administrativa posterior ao contrato e, portanto, imprevisível à época da licitação ou contratação direta, não é indispensável à legalidade dos aditivos no contexto dos contratos da Lei 13.979/20.
Para contratos celebrados em situação de normalidade, sob a premissa do adequado planejamento que cada vez mais se fortalece, a presença de um fato impossível de ser previamente considerado, ou as suas consequências, é requisito de legalidade implícito no art. 65, I e II da Lei 8.666/93. Em outras palavras, o termo aditivo autorizado pelo legislador ordinário é aquele que se mostra necessário diante de um fato superveniente imprevisível, restando ao gestor o dever de planejar corretamente suas contratações naquilo que for possível.[4]
No caso dos contratos celebrados com base na Lei 13.979/20, as exigências simplificadas de planejamento conforme o art. 4º – E[5], decorrentes da necessária celeridade, não permitem que se imponha aos aditivos contratuais, indistintamente, a existência de uma necessidade totalmente imprevisível. A simplificação da etapa de planejamento é tal que não se exige, para as contratações em questão, a elaboração de estudos preliminares e a gestão de riscos ocorrerá apenas durante a gestão do contrato.[6] A propósito especificamente da estimativa de quantidades, observa-se que não está elencada entre as informações obrigatórias do termo de referência ou projeto básico simplificado. Isso não significa sua total dispensabilidade, pois deverá constar da descrição resumida da solução apresentada, mas denota a mitigação da sua importância enquanto elemento que vincula, em termos absolutos, a atuação administrativa contratual. A razão parece elementar: não há que se exigir do gestor, em tais situações, a mesma precisão de planejamento exigível nas contratações regulares, não sujeitas às circunstâncias da pandemia.
Desse modo, não apenas fatos supervenientes à contratação podem embasar, licitamente, alterações em contratos destinados ao enfrentamento da emergência, nos termos da Lei 13.979/20, sendo igualmente possível admitir os aditivos em caso de eventuais equívocos de dimensionamento da necessidade a ser atendida, guardados, para os devidos fins, os comandos dos arts. 20 a 22 e 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB.
5. Aplicabilidade do limite de 50% às modificações qualitativas
O texto do art. 4º – I traz, talvez propositadamente, a mesma imprecisão do §1º do art. 65 da Lei 8.666/93, quando se refere a obrigatoriedade de aceitar “acréscimos e supressões ao objeto contratado”. Enquanto no dispositivo da Lei 8.666/93 a imprecisão dá margem a dúvidas sobre a submissão das alterações qualitativas aos limites percentuais para o fim de restringi-la, no texto da Lei 13.979/20, de modo similar, mas em sentido oposto, a dúvida remanesce quanto à aplicação, para tais modificações, da majoração do limite para o fim de ampliar as possibilidades da Administração contratante.
A questão em análise traz à tona um desafio que tem se colocado aos intérpretes e aplicadores da Lei 13.979/20, no sentido de entender a medida da aplicação da Lei 8.666/93 às contratações da Lei 13.979/20 e de entendimentos consolidados na jurisprudência e na doutrina a situações concretas ocorridas durante a pandemia. Apesar de a Lei 13.979/20 conter regras próprias e especiais para regular as contratações de enfrentamento da emergência gerada pela pandemia, visivelmente o fez de forma insuficiente, requerendo, pois, a integração de normas naquilo que não houver conflito.[7]
Assim, a) a considerarmos que os inc. I e II do art. 65 da Lei 8.666/93 delimitam as espécies de alterações unilaterais possíveis inclusive para os contratos decorrentes da Lei 13.979/20, b) que o art. 4º – I da Lei 13.979/20 somente tem o objetivo de aumentar o limite previsto na Lei 8.666/93 e c) adotarmos a mesma lógica de interpretação contida na Decisão 215/99-TCU, de que o §1º do art. 65 pretendeu fixar limites para ambas as espécies de alterações unilaterais, a conclusão será pela aplicabilidade do referido art. 4º – I da Lei 13.979/20 a modificações qualitativas e quantitativas. Assim, 50% sobre o valor inicial atualizado do contrato seria o limite ordinário para a realização de modificações quantitativas e qualitativas. Essa parece ser a linha de entendimento que mais guarda coerência com o sistema normativo e os objetivos da Lei 13.979/20.
Vale dizer que, mesmo em se compreendendo, eventualmente, que a Lei 13.979/20, enquanto lei específica, regulou integralmente as alterações nos contratos dela decorrentes por meio do art. 4º – I, afastando-se a aplicação, a qualquer título, da Lei 8.666/93 neste quesito, a única interpretação possível parece ser aquela que considera “acréscimos e supressões” de forma desatrelada da ideia de quantidade, pela absoluta falta de razão para permitir um limite maior apenas às alterações quantitativas. Assim, a toda evidência, o limite de 50% previsto é aplicável, também, às alterações de natureza qualitativa.
De todo modo, a regra do art. 4º – I da Lei 13.979/20 deve ser aplicada com a máxima cautela. Se os aditivos celebrados em situação de normalidade, à luz de uma disciplina já conhecida, são alvos de avaliação rigorosa por parte dos tribunais de contas, muito mais o serão aqueles decorrentes das contratações celebradas no período da pandemia, à luz de normas excepcionais, exigindo, portanto, atenção redobrada dos gestores com a motivação.
6. O risco da impossibilidade de cumprimento dos aditivos e a recomendação pela consensualidade
Tanto no âmbito da Lei 8.666/93, como da Lei 13.979/20, a obrigação do contratado de aceitar as imposições unilaterais da Administração está condicionada à manutenção das mesmas condições de execução. Assim, salvo a própria modificação, nenhum esforço adicional ao que foi inicialmente ajustado lhe será exigido.
A Lei 13.979/20 ainda condiciona a possibilidade de a Administração contratante valer-se do limite de 50% à correspondente previsão em edital e/ou contrato[8], medida que privilegia a segurança jurídica e a boa-fé contratual, considerando as circunstâncias especiais em que a contratação é celebrada. Com efeito, diante das condições que lhe são próprias nesse ambiente de pandemia, o contratado poderá escolher entre contratar ou não, ciente de que isso poderá representar uma redução ou um acréscimo expressivo nos valores inicialmente contratados. De outra parte, tendo dado ao contratado essa opção, a Administração estará em posição ideal para exigir o cumprimento das respectivas obrigações.
Contudo, tais salvaguardas, por óbvio, não suficientes para garantir que o aditivo será executado. Esse alerta, embora aplicável a qualquer contrato, se mostra particularmente relevante para os celebrados durante a pandemia, pois uma interpretação equivocada do art. 4º – I da Lei 13.979/20, especialmente da preexistência de cláusula no edital e/ou contrato, poderia levar ao entendimento de que se trata de uma obrigação absoluta. É importante observar que, no caso de solicitações que representem ônus de execução maior do que o inicial, quantitativa ou qualitativamente, não são poucas as chances de, chegado o momento de cumprir o aditivo, o contratado não possuir condições materiais para tanto, mesmo que mantido o equilíbrio econômico financeiro que lhe é assegurado. Se, em situações normais, eventos impeditivos caracterizadores do caso fortuito e da força atuam como excludentes de obrigações, isso também se aplica durante o período de pandemia. Isso significa que, não obstante a previsão contratual para as alterações unilaterais, com as quais, a rigor, o contratado previamente já consentiu, há chances de a pretensão administrativa restar insatisfeita sem que o contratado possa ser responsabilizado por isso.
Assim, parece-nos mais apropriado, seguindo a linha de consensualidade que já vem sendo adotada para a solução de questões relacionadas a contratos em vigor antes da Lei 13.979/20[9], que as tratativas visando aditivos sejam feitas de forma dialogada, resultando em um documento bilateral. Tal alternativa se mostra mais eficiente, uma vez que a comprovação da eventual impossibilidade de cumprimento das novas obrigações ocorrerá em momento prévio, em rito sumário, evitando a abertura de processo administrativo destinado à apuração da responsabilidade da empresa contratada e, consequentemente, o desperdício de tempo, energia e recursos em um processo que resultará, ao final, na exclusão da responsabilidade.
De todo modo, vale destacar que, em qualquer caso, permanece absolutamente válida a necessidade de o contratado, diante da impossibilidade de cumprimento, justificar sua conduta, a qual, não sendo escusável, caracterizará descumprimento contratual e ensejará a aplicação da sanção cabível[10].
Fonte: http://www.olicitante.com.br/alteracoes-contratuais-pandemia-covid-19/